Acrílico sobre cartão
“O esvoaçar de um sorriso”
A cultura é o verdadeiro pão do espírito, aquece-nos, alimenta-nos, dá-nos esperança, abre as portas do desconhecido, permite-nos compreender o significado das coisas, entontece-nos de prazer e de alegria, refletindo as mais sublimes imagens dos homens. Procuramo-la constantemente, através da escultura, da poesia, da escrita, do teatro, da música, da dança, do cinema, da fotografia e de outros inúmeros pequenos grandes atos, em que a criatividade não tem receio em se mostrar.
Ia a refletir sobre este tema, à saída de um belíssimo espetáculo, num domingo triste e chuvoso, que acabou por ser vencido pela criatividade dos participantes da sessão, quando fui, violentamente, despertado para a mais dura e triste das realidades, a morte de uma jovem colega. Momentaneamente, senti que não se pode fugir à realidade do sofrimento e da morte. Triste telefonema que teve o condão de relembrar não só a existência de algo que consegue esmagar tudo e todos como impedir o saborear do belo e alcançar a realização humana. Afundei-me nas profundezas da dor, uma dor que não se compara como a que naquele momento estaria a fulminar as almas e a queimar as esperanças dos familiares. Maldito mundo que se diverte a interromper o degustar de pequenos prazeres. Num lado a alegria, a satisfação, no outro a tristeza e o sofrimento. Os risos que ouvia ao meu redor emudeciam com os choros que sentia ao longe. Uns cantavam loas à vida, esquecendo-se das lágrimas negras da morte. A atração do belo não consegue superar o empurrão para a dor. E que dor.
As noites da morte adquirem uma estranha magia, obrigam as nossas almas a falar baixinho para não perturbar o silêncio dos mortos. À medida que me aproximava do local, o silêncio tingia-se de uma certa doçura, irradiando calmaria, uma bonança não anunciada, perfeito contraste com o apagamento de mais um ser humano. O espaço não era frio. Estranho. Muito estranho. Abracei o meu colega e expressei-lhe com as mais silenciosas palavras tudo o que sentia. Ouvi-o sussurrar ao meu ouvido um único lamento: oh, meu Deus!, em resposta ao forte e mudo abraço.
Sentei-me e deixei passar o tempo que, sensibilizado pela atenção que lhe estava a dar, fez-me recuar alguns anos, transportando-me a uma esquina de uma rua da baixa de Lisboa, quando esbarrei com um belo sorriso. Cumprimentei-a com a efusão típica de quem vê as pessoas fora da nossa cidade, onde, praticamente, nunca nos cruzamos. Que belo sorriso, revelando uma beleza de quem não tem receio de mostrar a nudez da alma, confirmando a existência de seres únicos capazes de nos confortarem quando necessitamos de ajuda.
Um sorriso que eu tinha guardado e que começou, lentamente, a libertar-se, embelezando e enchendo a atmosfera da nave da igreja do velho mosteiro. Um sorriso a esvoaçar livremente e sem sofrimento que eu tentei aprisionar nestas breves palavras.
Salvador Massano Cardoso